[ Programa ] #153
Alô alô tropicaleiros e tropicaleiras!!
Apertem os cintos, peguem seus EPIs de segurança e já aumenta o som: preparades?
Depois de um mês recheado de sets contendo miscelâneas de gêneros e estilos garimpados ao longo dos últimos meses, voltamos com nossa programação habitual num set com uma imensa miscelânea de estilos dentro da música eletrônica, feito na edição do dia 26/05 da Sessão em Casa.
>> vibe
Despertador toca incessantes vezes. Ignoro o despertador todas as vezes, até que tomo consciência do horário em algum submundo do meu consciente e levanto da cama. Tomo meu café com alguma coisa atrapalhando meu cérebro de pensar, coisa essa que vai se acumulando como uma imensa massa de pensamentos indesejados e não tangíveis. Numa quase indigestão racional, esse bolo de pensamentos se transforma num sentimento de desespero que me força a chorar como se não houvesse solução na vida. É um luto de algo não definido, é um desespero por não saber o motivo de mais um crise que acontece na calada da solidão da escovação de dentes.
E quando termino a higienização bucal, me encaro no espelho ainda sem entender o que está acontecendo, mas já vislumbrando o sorriso de canto de boca que a ironia começa a despontar. Eis que o corpo se divide em duas matérias: uma tomada pelo desespero, a outra tomada pela ironia e pelo prazer em ver o desespero que faz um mesmo olho chorar e se encarar com desprezo. Um lado de si só quer sentar-se e deixar que lágrimas escorram, o outro lado de si dá risada com uma ironia raivosa achando patético o desespero generalizado que inunda um corpo presente em duas formas.
E tudo o que penso é em espremer o cérebro de tal forma até que tudo isso se transforme em arte: penso em gravar um vídeo performando a música que escuto. Penso em meu dedo cortado no outro dia e o líquido denso e vermelho escorrendo. Sorrio lembrando-me do sabor salgado e ferroso do sangue. Imagino a gota caindo, temperando a salada, a língua degustando uma parte de sua própria composição, o prazer do ferimento, o prazer do desespero, o sabor do outro alguém que sou e observo. Observo de um lado, consumindo-me no nada, observo-me do outro, maldosamente em êxtase.
Para não separar a matéria, limpo e organizo o espaço. Já não choro mais, apenas sinto o vazio incompreendido de não ter posto em prática as distorções sonoras do que ouvia e pensava. Já não dou mais o sorriso de canto de boca, apenas delicio-me com a antropofagia de mim mesma que restou do episódio. Consumida por estruturas falhas, exausta pela produção ininterrupta, a mente em fragmentos, espaços de duas presenças que abandonaram-me entre a tristeza e o deboche raivoso que me permearam. Um cérebro que já não consegue mais pensar no mesmo fluxo, que pasteurizou sua vontade, que existe fisicamente no mesmo corpo, num corpo que só existe e não pensa sob as características que o compõe.
Uma matéria cansada de sua própria chacota. Uma personalidade exaurida pelo esforço da crise. Uma crise que voltará a acontecer sem aviso prévio. Uma separação de si, sem nunca ter deixado de ser um conglomerado único de células. Uma realidade virtual descontrolada. Uma realidade que nasce em apenas um ser que se divide em dois e é observado por um terceiro. Um ser fisicamente composto apenas por si, mas que se desdobra em três, sem conseguir centralizar-se por inteiro.
A fome se esvai, a vida em cacos num luto pela não identificação consigo mesma. Ao olhar-se no espelho, por fim, define que não vê mais ninguém. São os olhos de outro alguém olhando os seus próprios. Sabe que são fisicamente seus olhos porque tem consciência de estar onde está; mas não olha para si porque o si se fragmentou no processo de esvaziar sua energia e sua vontade, mesmo sem querer. O que lhe resta é tentar fazer arte com o que planejou fazer ao longo daquele etéreo tempo. O que lhe resta é tentar lembrar da complexidade de vozes que se articulavam em torno do seu silêncio, mesmo sem ter anotado as tremendas ideias que, ironicamente, lhe pareciam tão intensas e que, agora, parecem superficiais e clichês.
Ainda assim, escrevo. Ainda assim tento traduzir o que eu mesma senti, sem ter o refinamento técnico necessário para incorporar verbalmente a antropofagia intensa da qual fui parte ativa e pela qual aguardo novamente participar, já que será inevitável, talvez na próxima vez com ferramentas artísticas para produzir ou registrar esse processo: inunda o corpo de energias, depois o esfria com a ausência. Ausência de que mesmo? De si mesmo. Inundação de que mesmo? De si mesmo. Suportar, a si mesma. Insuportável frieza de um corpo vivo que não assimila.
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Lacuna Tropical
laboratório de experiências de música eletrônica e discotecagem em toda a sua amplitude e pluralidade
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