[ Programa ] #163
Apertem os cintos, peguem seus EPIs de segurança e já aumenta o som: preparades?
Nesta edição você confere dois sets feitos pela Grazi Flores em formatos de live para o Twitch em dois diferentes rolês: começamos com o set feito pra Vai Na Fé! da edição do dia 25/06, tocando ao lado do Formiga e do Nato PK, numa vibe bem trip hop; depois de cerca de 1h30, saltamos pro techno que foi explorado num set de 3h pra edição do dia 23/06 da Sessão em Casa, tocando ao lado de Beto Machado, Rafa Barros e Lovesteady.
E pra ninguém ficar triste dizendo que eu não avisei, sexta que vem (16/07) não teremos episódio inédito do nosso tradicional programa por motivos de: festival VIBE LACUNA III EDIÇÃO!
Inclusive, fica de olho nas novidades do festival aqui pelo blog e aproveita pra já colar no evento do Facebook também (clique aqui).
>> vibe
Meu eu, por que fazes isto comigo? Por quê?
Sigo caminhando e ouvindo os ecos dos passos sem saber ao certo se são os meus ou não. Já cansei de fazer testes e ajustes no ritmo e na intensidade dos passos dados, já cansei de tentar descobrir se sou eu ou se são frutos de outro alguém. De todo modo, não vejo ninguém ao meu redor, de forma que não sei dizer se eu me tornei invisível e anônima no mundo ou se o mundo ao qual realmente pertenço ainda está invisível à minha percepção. Então apenas caminho entre o breu e o arco que antes, combinados, refletiam sons. Eis, enfim, uma lembrança projetada e materializada tal qual uma luz distante, no fim de um túnel, que colocou-me novamente nesse lugar. É apenas a reprodução do que já se foi e mesmo que eu queira alterar, como tudo o que se passa em minha mente, para ajustar ao que hoje sou, encaro o arquivo bruto contentando-me apenas em contemplá-lo, como que honrando essa parte daquilo que, inevitavelmente, também guardo em mim.
Do alto do vigésimo quarto (ou seria o vigésimo sexto?) andar de mais um prédio da paulista, estou sentada em uma cadeira que me posiciona em um desses cubículos de escritório. O monitor ligado à minha frente informa se devo ajustar ou não os parâmetros daquela conferência. Como uma forma de trazer um pouco de mim para aquele espaço, levei alguns livros que queria ler, e que ainda não havia lido, para o canto esquerdo da pequena mesa. E como uma forma de tentar me camuflar ao ambiente de mulheres no qual eu trabalhava, silenciosamente, batalhava para que uma suculenta sobrevivesse naquele ecossistema de ar-condicionado frio e seco com curtas horas de sol que as imensas janelas permitiam que entrassem, na esperança de que outros prédios gentilmente dessem brechas para que o sol ainda existisse ali onde a vida tentava resistir. Já não estava mais interessada em maquiagem ou roupas ou empreendimentos que me fizessem gastar minhas moedas em status de saudável ou estilosa. Mas secretamente frequentava os canais que elas abriam em seus navegadores e consumia aquilo que elas conversavam, na esperança de ter algum tipo de opinião que me desse a autorização de pertencer ao grupo delas. Mas não pertencia e não havia nada que pudesse fazer para fingir ser como elas.
Lá fora, protestos e bandeiras da CUT, aqui dentro, comentários sobre o funcionamento digestivo de seus intestinos como prova de sua saúde. Lá fora, tambores gritando em revolta. Aqui dentro, o gloss do momento e o blazer que se pretendia adquirir na loja ao lado do prédio. Lá fora, um rio de pessoas fazendo greves contra o sistema. Aqui dentro, o monitoramento e o cuidado para o sistema seguisse funcionando. Aqui fora, os risos sobre o último meme do Buzzfedd. Aqui, intimamente dentro, o sangue que escorria de feridas que eu já não sabia mais estancar. Parei de abrir aqueles mesmos sites e fui ler Sandman. Terminei de ler Sandman e, sem ter como comentar a respeito, fechei mais uma aba de distanciamento entre aquelas mulheres que eram tão diferentes de mim.
Olhando para o Maksoud, para minha suculenta, para meus livros, para mim, ouvia minha chefe indignada com a minha capacidade de errar. Era chamada de canto para ser repreendida porque meu tom de voz era inadequado ao ambiente. Elevei alguns tons sobre meu timbre natural, suavizei com a alegria vazia de quem está avidamente ansiando por exercer uma função que não mudava o mundo com a mesma perfeição de quem faz uma maquiagem que durará poucas horas e que será retirada como a máscara que já derreteu ao longo do expediente e que, ainda assim, não cobriu essa petulância que existia em mim e que era grifada por minha superior. Uma petulância que eu já nem sabia identificar e que, portanto, não fazia ideia de como alterar. Uma petulância que a incomodava e as outras mulheres desdenhavam. No final, descobri que tratava-se não de uma característica, mas apenas de minha existência.
Entre repreensões sobre o que eu fazia, risadas e comentários do que eu não fazia e experiências que não eram vividas por aquelas que me cercavam, resolvi adentrar no lodo de meu próprio sangue coagulado em torno das feridas e abri, influenciada pela capa do livro, Caim de Saramago.
Foi ali que li uma frase que conseguiu resumir o que profissionalmente e pessoalmente eu vivia dentro da república em que morava e dentro do escritório que eu fora contratada para trabalhar. Matei Abel por não poder matar Deus, dizia a frase, mais ou menos. Atravessada e impactada, escrevi a frase na parece do corredor externo da república, localizada na Liberdade. Ecoada, meses depois, a frase tornou-se concreta, enfim, 15 dias antes de encerrar aquilo que teria sido um ano de comprovação da minha força de trabalho. Já morando sozinha, num quarto desconectado do mundo, em um dia que teria sido só mais um dia de trabalho, tive minha rota alterada para uma sala de reunião onde foi constatado: não pertencendo ao grupo com o qual trabalhava e não havendo mais recursos para manter as pessoas que custavam à empresa, tive que colocar meus pertences em uma caixa e, junto com minha suculenta, sem motivo para caminhar de forma compassada pelos concretos da avenida que movia a economia da metrópole, olhei para o parco sol que brilhava entre as linhas retas que pairavam sobre mim: Darwin ganhou novamente em suas teorias da evolução e eu, não conseguindo adaptar-me, novamente era jogada no limbo entre o céu e o inferno, entre a estabilidade e o incerto, entre mim e eu mesma.
Meu eu, por que fazes isto comigo? Por quê?
Caminho, sem destino, com papéis e um planta nos braços. E a luz, que antes iluminava o fim do túnel, passou a se pôr, sem que eu pudesse fazer qualquer coisa para alterar sua natureza. Então, mesmo que estática no mesmo canto, ouço o eco dos passos. E continuo sem saber se são meus ou se são de outro alguém.
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Lacuna Tropical
laboratório de experiências de música eletrônica e discotecagem em toda a sua amplitude e pluralidade
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