[ ESPAÇO REGGAE ] COLECIONADORES: LOUCOS POR VINIL
Por Tarcicio Selektah
Seletor, colecionador, pesquisador - da Jamaica ao Maranhão
O que você faz por uma paixão? É capaz de enfrentar um frio de 20 graus abaixo de zero para poder encontrar o objeto de seu desejo? Ir para um país de idioma completamente desconhecido para ele? Deixar de pagar as contas de luz/água e colégio das crianças? Passar fome na rua? Gastar todo o salário de uma vez só? As idas às baladas e ao cinema não constam mais no seu programa de lazer para poupar o rico "vil metal"?
Loucura? Irresponsabilidade? Para um grupo de colecionadores de discos de vinil nenhum sacrifício é o bastante. Em muitos casos, todo o trocado que consegue reverte-se para comprar o objeto de seu desejo. Há colecionadores que possuem mais de dez mil discos, entre LPs e compactos.
O colecionador cuidadoso e atento às suas raridades, cataloga-os em ordem alfabética, os mantém cobertos com capas plásticas e os guarda sempre na posição vertical para evitar que os discos sofram deformações ou sejam arranhados, e longe da umidade e poeira. Há quem goste de fazer e usar um baú, como é o caso comum de alguns colecionadores do Maranhão. Outros utilizam estantes, onde estão guardados não só os vinis, mas também fitas de vídeo, DVDs, CDs, posters, letras de músicas, fotos tiradas com seus ídolos. O gosto do colecionador pelo pretérito na ilha é tão conhecido que já se incorporou ao seu sobrenome: sãos os Marleys, os Browns, os Roots, os pedras e por aí vai.
Cada colecionador, ou grupo, traz consigo uma história diferente, porém todos têm em comum a paixão pelos discos. Nesse meio, há todos os tipos e tribos que vão dos moradores dos bairros periféricos aos que galgaram um nível de estudo universitário. O comum, entre todos estes “malucos”, é sempre achar que possuem a “pedra” mais rara que possa existir, ou o disco, seja ele LP e/ou Compacto. Não poderia deixar aqui de render minhas homenagens ao grande Serralheiro, pessoa pela qual tenho um grande carinho e admiração pelo seu pioneirismo de viagens em busca das “pedras perdidas”. Com isso não quero desmerecer aos demais “peregrinos” que saíram daqui para “garimpar” discos, seja em Belém, São Paulo, Rio de Janeiro, Londres, Kingston ou de qualquer outro lugar do planeta.
A paixão do colecionador por suas músicas muitas das vezes foge a toda possível explicação racional. Pois como dizem os estudiosos do cérebro, a paixão humana não pode ser explicada de modo lógico e racional. Uns começaram simplesmente ouvindo as músicas no rádio, outros compraram discos sem ter o velho Pick Up ou toca-discos, uns começaram sua coleção na adolescência, outros, já na maturidade. Cada um tem o seu “carma” de colecionador para contar e explicar, sempre querendo demonstrar sua “superioridade” de ser o “cara inteirado”, como se diz na ilha, no tema.
Aqui na ilha há muitas “lendas” sobre compras e vendas de discos por parte de radioleiros, viajantes (Serralheiro, Pinto da Itamaraty, Antonio Cardoso - Diamente Negro, Ferreirinha, Luzico, Dread Sandro, Junior Black, Natty Nayfison, Enéas Motoca, Ademar Danilo, Jorge Pinheiro, só para citar alguns) e colecionadores. O interessante e peculiar do movimento reggae da ilha é que boa parte dos colecionadores de discos de reggae, em sua grande maioria não é versado no idioma cantado de sua paixão musical. O ato de apelidar as músicas de “melô”, originada da palavra melodia, tem muito a ver com essa falta de conhecimento específico do idioma, mas também repete a Jamaica no esconder o nome do cantor/banda e o nome da música, são as chamadas “exclusividades”. Para entender o que o cantor estava dizendo, muitos começaram a estudar inglês de forma autônoma com afinco e outros foram “obrigados” a entender o idioma de tanto viajar.
Outro fato interessante foi a tentativa de fazer as traduções das músicas, ato este nem sempre bem-sucedido, o problema é que na maioria das letras há gírias e/ou é escrita em patois (ou patwa), dialeto jamaicano, uma mistura de idiomas dos colonizadores franceses, espanhóis e ingleses.
Na minha opinião, o “mercado” para colecionador de vinil está parado na ilha, pois há muitos anos não vemos as caravanas dos chamados viajantes moverem- se no rumo das “jazidas de pedras”, mais particularmente a Kingston ou Londres. De certa forma, hoje, a internet supre as necessidades discográficas dos colecionadores. E tem até gente que já “fabricou” viagens a estes dois países, quando na realidade foi passar 15 dias em São Paulo. Mais uma para o folclore do reggae Ludovicense.
Para os menos avisados, a produção de vinil continua em plena expansão com o surgimento de pelo menos 3 novas gravadoras por ano. Como não poderia deixar de ser, a produção de novos modelos de toca-discos e agulhas segue o mesmo caminho: foram constantes nas duas ultimas décadas.
Dá para explicar tamanha paixão? Principalmente nos dias atuais, quando o avanço tecnológico faz com que se ouça músicas com um grau de "pureza" que o chiado dos discos não tem? Para os apaixonados, sim. Dependendo do colecionador, se você falar mal do vinil, "cabeças podem rolar".
O CD, que teve sua vida abreviada, foi uma sensação durante metade dos anos 90 até a chegada do pendrive, mas não há como comparar a sensação que se tem quando se manuseia a capa de um LP, ao tocá-la: há todo um ritual por conta do design. Não sou nostálgico, careta, ou dinossáurico, mas o vinil é mais bonito: a pessoa pode ver detalhes que não dava pra ver no CD, apesar deste ter, às vezes, ter um som mil vezes melhor (isso é algo que temos que admitir). O som do CD realmente é melhor, mas alguns discos são recordações de um passado que não volta mais. Além disso, a capa, os detalhes, os créditos, o selo... Tudo é muito bonito.
Podemos teorizar sobre o assunto dizendo que somos (no caso daqueles que passaram dos 50) de uma geração que surgiu para transformar o mundo. O reggae faz parte de um contexto de movimentos sociais, culturais e de músicas de todos os estilos que marcaram histórias e gerações. Hoje, encontra-se garotos de 17 anos apreciando Bob Marley, Jimmy Cliff, Led Zeppelin, AC DC e Beatles, sem ter uma explicação: os pais não incentivaram, ou coisa parecida. Não sei se no futuro ainda haverão colecionadores de vinil, mas a boa música sempre ficará viva na mente e no coração dos verdadeiros colecionadores.
Pois é, paixão não se explica, se vive.
Um reggae-abraço e até a próxima.
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